quinta-feira, 20 de maio de 2010

Do efeito traslativo dos recursos

Entende-se por efeito translativo a capacidade que tem o tribunal de avaliar matérias que não tenham sido objeto do conteúdo do recurso, que não foram analisadas na sentença, bem como que nem mesmo foram suscitadas pelas partes, por se tratar de assunto que se encontra superior à vontade destas. Em outras palavras, o efeito translativo independe da manifestação da parte, eis que a matéria tratada vai além da vontade do particular, por ser de ordem pública, que deve assim ser conhecida de ofício pelo juiz e a cujo respeito não se opera a preclusão. Valemos aqui então analisar a utilidade e a aplicação do efeito translativo dos recursos.
É certo que a apelação gera a devolução da matéria impugnada, ou seja, a extensão do conhecimento do órgão “ad quem” é delimitada pelos capítulos da sentença que tenham sido recorridos, tendo em vista o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC. A transferência do exame das questões de ordem pública, por razões óbvias, não decorre desse efeito devolutivo o qual guarda estreita relação com o princípio dispositivo representando no segundo grau, pela máxima “tantum devolutum quantum appellatum”. Pela natureza das questões, torna-se irrelevante a efetiva provocação das partes para que o tribunal as analise.
Como o efeito devolutivo da apelação possui fundamento legal nos artigos 515 e 516 do CPC, cumpre ressaltar que a possibilidade, “rectius”, a necessidade de exame de tais questões de ordem pública pelo órgão responsável pelo julgamento da apelação, decorre, no plano legislativo, do próprio art. 267 do CPC, parágrafo 3º e art. 301, parágrafo 4º do CPC, que expressamente autorizam o exame de questões ali mencionadas, em qualquer grau de jurisdição, mesmo sem o requerimento das partes.
Dessa forma, em virtude do efeito translativo, o julgamento da apelação poderá ter como conseqüência a própria extinção do processo se o tribunal reconhecer faltar, por exemplo, algum pressuposto processual ou uma das condições da ação. Sendo o recurso dirigido apenas contra o mérito da decisão, a superveniente extinção do processo, pode acarretar piora na situação do próprio recorrente. Entretanto, sobre as questões de ordem pública, tais situações justificam-se pela relevância dos interesses em conflito, que autorizam a modificação da decisão recorrida, mesmo em sentido contrário às pretensões do apelante. Não é tecnicamente correto falar, nesses casos, em “reformatio in pejus”, na concepção que normalmente se dá a essa expressão, estreitamente vinculada ao princípio dispositivo, como também, em se tratando de efeito translativo, não há que se falar em julgamento extra, ultra ou citra petita.
Em conclusão, pode-se considerar inequívoca a possibilidade de o órgão “ad quem” examinar questões de ordem pública que não tenham sido mencionadas no recurso de apelação, que não foram decididas na sentença de primeiro grau, e ainda que sequer foram objeto de discussão pelas partes no processo, e o que se dá pelo efeito translativo. Neste sentido: "O tribunal é autorizado a conhecer esses temas de ordem pública, ainda que não tenham sido ventilados, seja no juízo a quo, seja nas razões de recurso. Tais temas não se submetem ao efeito devolutivo, e podem ser conhecidos pelo tribunal sempre, em qualquer circunstância, bastando que tenha sido interposto sobre alguma decisão da causa, e que esse recurso chegue a exame do juízo ad quem" 1.
Assim, entendo não haver dúvida em afirmar que os recursos ordinários possuem como efeito autônomo o efeito translativo, diante da relevancia das questões de ordem pública que devem ser conhecidas de oficio. Entretanto, questão divergente é quanto os recursos excepcionais possuírem o efeito translativo.
O entendimento predominante na doutrina, defendido por vários doutrinadores, como Marinoni e Alexandre Freitas Câmara, vem sendo o da inadmissibilidade do efeito translativo nos recursos "extraordinários" "latu sensu", ou seja, no Recurso Especial e Extraordinário. Argumenta-se que tais apelos por serem de fundamentação vinculada não permitiriam o controle de questões de ordem pública não prequestionadas, só admitindo o controle objetivo da Constituição e da legislação federal que tiverem sido prequestionadas nos tribunais "a quo" (e juízos nos casos permitidos para o recurso extraordinário).
“Data vênia”, entendo, porém, que tal posicionamento é equivocado, pois confunde o juízo de admissibilidade dos recursos especiais e extraordinários com o juízo de rejulgamento da causa e os efeitos que são próprios a tais apelos. O prequestionamento só teria relevância no momento do juízo de admissibilidade e que após o tribunal superior ter o conhecimento do recurso este ficaria livre para aplicar o direito, inclusive matérias de ordem pública que não foram prequestionadas.
Realmente, está consolidado na doutrina e jurisprudência que o conhecimento dos mencionados recursos subordina-se que estes sejam "apreciados" pelas instâncias inferiores, ou seja, somente o conhecimento está vinculado e não a "profundidade" do exame, pois uma vez admitidos os tribunais superiores estariam "livres" para examinar o direito objetivo. Tal posicionamento vem encartado no enunciado 456 da Súmula do STF, onde se observa que a Corte Maior define bem que após a fase em que se procede a admissibilidade do Recurso Extraordinário, não havendo "contaminação" entre os requisitos inerentes a esta fase e a seguinte em que haveria o exame do mérito, podendo aplicar o direito à espécie sem qualquer
A jurisprudencia do STJ e STF vem entendendo pela aplicação do efeito translativo em recursos especial e extraordinários. É importante ressaltar que ainda que a doutrina se posicione na defesa da regra do efeito translativo não atingir os recursos excepcionais, a jurisprudência têm demonstrado posicionamento flexível a tal regra em determinados casos. Assim, as matérias de ordem pública, ainda que desprovidas de prequestionamento, podem ser analisadas excepcionalmente em sede de recurso especial e extraordinário, cujo conhecimento se deu por outros fundamentos, à luz do efeito translativo dos recursos. Precedentes do STJ: REsp 801.154/TO, DJ 21.05.2008; REsp 911.520/SP, DJ 30.04.2008; REsp 869.534/SP, DJ 10.12.2007; REsp 660519/CE, DJ 07.11.2005.
Assim, entendo que, todavia, embora com a devolutividade limitada, já que destinado fundamentalmente, a assegurar a interireza e a uniformidade do direito federal infraconstitucional e contitucional, os recursos excepcionais não são vias meramente consultiva, nem um palco de desfile de teses meramente acadêmicas. Também na instância extraordinária o Tribunal está vinculado a uma causa, e portanto, a uma situação em espécie (Súmula 456 do STF, art. 257 do regimento Interno do STJ). Assim, quando eventual nulidade processual ou falta de condição da ação ou de pressuposto impede, a toda evidência, o regular processamento da causa, é cabível, uma vez superado o juízo de admissibilidda do recurso, conhecer, mesmo de ofício, as matérias ordem pública, e nesses limites é de ser reconhecido o efeito translativo como inerente também ao recurso especial e extraordinário.
Pelo exposto, entendo que o efeito translativo como um efeito autônomo dos recursos, não só é possível, mas como também necessário, afim de garantir não só decisões mais justas, bem como a integridade do Ordenamento Jurídico, evitando-se que seja desobedecido pelas mais altas cortes, levando-se pois em conta que estarão sendo analisadas matérias de ordem pública, e assim superiores à vontade e interesses dos particulares.

BIBLIOGRAFIA:
GIOLO JÚNIOR, Cildo. Efeito translativo no recurso especial. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1706, 3 mar. 2008. Disponível em:http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11009. Acesso em: 23 nov. 2009.
AGUIAR, Filipe Silveira; LEAL, Pedro Henrique Peixoto. Efeito translativo nos recursos extraordinários. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1455, 26 jun. 2007. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10016. Acesso em: 26 nov. 2009.
APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. A apelação e seus efeitos. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 4a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.