O Código de Defesa do Consumidor institui princípios que regulam as relações de consumo, e um dos mais importantes institutos criados foi a inversão do ônus da prova previsto em seu artigo 6º, inciso VIII, dissolvendo a regra do artigo 333 do CPC. Porém o referido dispositivo legal cosumeirista somente possibilita esse instituto quando o juiz constatar a verossimilhança da alegação do consumidor ou sua hipossuficiência. Portanto, trata-se de um dever do magistrado, que através de uma analise subjetiva dos fatos, realizando juízo de valor apenas à cerca dos requisitos exigidos, verificará se é o caso ou não de declarar a inversão do ônus da prova, e o fazendo, inclusive, de oficio.
Contudo, questão processual controvertida, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, é quanto ao momento mais adequado para declarar-se a inversão, visto que não há previsão legal que ampare a questão.
Há uma corrente, defendida por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Jr., Cecília Matos, que se posiciona no sentido de que o momento processual adequado para a inversão do ônus da prova é no julgamento da causa (na sentença) tratando-se, pois, a inversão de regra de julgamento.
A outra, com a qual comungo, defende o despacho saneador como momento processual adequado para a inversão do ônus probandi, e tem à frente também ilustres jurista como Carlos Barbosa Moreira, Teresa Arruda Alvim e Luiz Antônio Rizzato Nunes.
A meu ver, ante a ausência de regra específica que determine a fase do procedimento adequada ao ato judicial de fixação do ônus da prova, deve o juiz utilizar-se de seu poder instrutório (art. 130 do CPC), visando assegurar um tratamento igualitário às partes (art. 125, I do CPC). Assim, verificando a necessidade da referida inversão nos termos do inciso VIII do art. 6º do CDC, cabe à ele determiná-la no despacho saneador, afim de garantir às partes a ampla defesa e o contraditório, configurando, pois, a inversão do ônus da prova regra de procedimento, sendo assim matéria de instrução, cuja finalidade é de possibilitar que as partes saibam se conduzir no processo, especialmente para que saibam a qual delas toca o respectivo ônus.
O que não pode admitir-se é que o processo seja uma armadilha às partes afim de causar-lhes surpresas. A inversão do ônus da prova à luz do CDC deve ser assim declarada previamente pelo magistrado. Do contrário criaria-se insegurança às partes, compelindo uma delas a eventualmente produzir prova contra si própria, por ter receio de sofrer prejuízo decorrente de uma inversão de ônus no momento da sentença. Entendo que a tese de que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento não é compatível com o princípio do devido processo legal, e a adoção dessa tese permite que o processo corra sob clima de insegurança jurídica, colocando, ao menos, uma das partes em dúvida quanto a seus encargos processuais.
Ademais, importante consignar que o fenômeno do ônus da prova pode ser enfocado como regra de julgamento (ônus objetivo da prova), quando, em síntese, inexistente ou deficiente a prova para formar o convencimento do julgador, este, quando da prolação da sentença, julgará em desfavor daquele que detinha o ônus da prova, não confundindo-se, pois, com a natureza da inversão do ônus da prova à luz do art. 6º, VIII do CDC, que trata-se de regra de procedimento, que deverá ser aplicada pelo juiz ao verificar a necessidade da referida inversão, e o fazendo no despacho saneador, após analisar os termos da petição inicial e da defesa, determinado as provas necessárias à instrução do processo (art. 331, § 2º e 3º do CPC), e, em decisão fundamentada, impugnável por meio de agravo (art. 522 do CPC).
As partes devem estar cientes quanto à convicção do juiz sobre a concretização dos pressupostos exigidos no art. 6º, VIII do CDC, tendo em vista que a inversão não é automática, o CDC apenas faculta ao magistrado inverter o ônus da prova. Dessa forma, tal inversão no momento da sentença, após toda a instrução probatória ter sido precluída, seria uma afronta ao princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV da CF/88), causando cerceamento da defesa do fornecedor (ou prestador de serviços), pois ao mesmo tempo em que estivesse invertendo o ônus da prova, o juiz já estaria julgando, sem dar ao fornecedor a chance de apresentar novos elementos de convicção, com os quais pudesse cumprir aquele encargo.
Neste sentido vem se posicionando a jurisprudência do STJ e providencial edição do Enunciado 91 da Súmula do TJ-RJ, segundo o qual: “A inversão do ônus da prova, prevista na legislação consumeirista, não pode ser determinada na sentença” (DJ 17.11.2005). A justificativa da referida corte estadual, com a qual concordo plenamente, é a de que a inversão do ônus da prova, em favor do consumidor, não é legal, mas judicial, pelo que o fornecedor seria surpreendido, se considerássemos a sentença como momento processual da inversão, em afronta ao princípio do contraditório.
Para Rizzatto Nunes1, a decisão sobre inversão do ônus da prova deve ser dada até a fase de saneamento, ou seja, entre a petição inicial e o saneador, antes da fase de instrução e julgamento, e ainda que, uma vez determinada a inversão, cabe àquele a quem foi transferido o ônus processual arcar com as despesas econômicas decorrentes da produção da prova.
É certeiro que a doutrina compreende que ocorre o ônus probandi para que se resolvam assuntos analisados na ocasião da sentença. Porém, pela garantia ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, as partes devem desde a fase instrutória apreciar as normas que irão preponderar na apuração da verdade real sobre a qual se ajustará ao fim do processo a resolução da demanda.
Assim, após grande pesquisa que resultaram em posicionamentos diversos, acolho o de que a inversão do ônus da prova com base no artigo 6º, inc. VIII do CDC configura-se regra de procedimento, que deve ser decretada pelo juiz no despacho saneador, em decisão fundamentada, haja vista que a decisão da inversão do ônus da prova tem a finalidade de possibilitar que as partes saibam se conduzir no processo, especialmente para que saibam à qual delas toca o respectivo ônus, garantindo-se assim os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório previstos no art. 5º, LV da Carta Magna.
BIBLIOGRAFIA:
GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
NERY Jr, Nelson e Rosa Maria. Código Civil Anotado e Legislação Civil Extravagante 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
MATOS, Cecília. O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Artigo in Justitia, São Paulo, 57 (170), abr./jun. 1995.
DALLASTA, Viviane Ceolin. Momento processual para a inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: http://www.ufsm.br/direito/artigos/consumidor/inversao-prova-cdc.htm. Acesso em: 28.09.2009.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade Civil. Indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Resp 422.778 SP. Relator: Min. Castro Filho, rel. p/ Min. Nancy Adrigui. Brasília, DF, 19 de junho de 2007. DJ 27.08.2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Inversão do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Momento processual. REsp 598.620 MG. Relator: Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Brasília, DF, 07 de dezembro de 2004. DJ 18.04.2005.